sexta-feira, 21 de novembro de 2008

(2008/10) Que gente é essa?

1. Que me olha dos trens, de um lado e de outro, das janelas e das portas dessa correição de ferro. Que tem a face triste do cansaço de um dia atrás do outro. Que tem seus mistérios por debaixo da pele. Da roupa. Que carrega seus pedaços de passado em cada ruga. Que foi deixando pedaços de si - nem viu - à medida que foi simplesmente seguindo a viagem. Que gente é essa?

2. Essa gente sabe o que é?, quem é? Essa gente sabe que se faz a si mesma, dia e noite, um sol que quanto mais se consome, mais é, mais está, mais promete? Uma árvore a crescer, em algum pedaço de seu percurso rumo à luz - se não lhe pisam, não lhe comem, não lhe queimam, não lhe cortam? Essa gente sabe que é um rio - o único (mas como, se ontem era como todos os outros?) que pode subir leito acima, parar, transbordar, alagar, alagar-se, rio sem curso, sem foz, sem leito - só rio e mais nada? Que gente é essa?

3. Os automóveis são como as igrejas - afastam-nos do mundo. Nós, automobilistas, nos tornamos passarinhos a voar, sem esbarrarmo-nos com os seres na terra, das pedras, do limo, dos cantos, dos becos. O nosso ambiente, trancados sempre, é o ar, volátil, asséptico, limpo, livre, nosso. Os trens - não! Os trens são ambientes de nudez: faces nuas, rugas nuas, mãos nuas, olhos que mais nus não há. O trem nos traz de volta à vida. Pelo toque irrefreável de um no outro.

4. E, contudo, esfrega na nossa cara uma verdade desconcertante - a de que essa massa de gente sequer sabe de si: não lhe contaram, não procurou saber, nunca soube, porque ocupada demais entre coisas infinitamente mais urgentes e banalidades desprezíveis ou criminosas. Porque ali, no trem, estamos diante das possibilidades plásticas da vida, seus ensaios - gente boa, gente má, gente forte, gente fraca, gente sã, gente doente, criança, jovem, adulto, velho, no singular, no plural, no masculino, no feminino, nos ensaios de gênero.

5. É paradoxal - essa gente pode ser tudo o que quiser. Mas, na prática, é-se o que se pode ser, o que a vida permite, o que os outros deixam, o que as oportunidades determinam. O trem não é o crupiê, ele já é uma das fichas, um número não escolhido da roleta, a sorte que cabe a tantos.

6. Mas que gente é essa? Projeto abortado? Potência frustrada? Malogro de megalomania DNÁdica? Desperdício da orgia de sexo que impera no nível ecológico da Terra? Dispensabilidades na contabilidade do Destino? Teimosia de coisa que não vingou, mas não morre? Não é isto que a profundidade da filosofia do Homo sapien nos diria, agora, vendo esse trem à direita, e esse outro, à esquerda, enquanto vamos caminhando, mônadas filosóficas a questionar o Inquestionável? Essa gente, aí, essa cara que me olha, que me arrosta, é aquela mesma de Pascal, que "sabe" que o Universo a esmaga? Ou não é mais do que carne vivendo, empurrada por células cujo único desejo é o trabalho e a fadiga?

7. Essa gente é uma pedra. Está aí. Nem sabe, contudo, que eu, agora, olho para ela com olhos de outros mundos, porque ela, essa massa que aí me encara, vive em outra esfera - e ainda deverá o sol cruzar o céu muitas vezes, antes que ela mesma, como eu, possa olhar para si mesma com olhos de olhar para si mesmo. Por hora, ela está ocupada demais com pão, para cuidar de estrelas. Por ora, naõ sabe, mas aguarda alguma coisa entre o parto e o aborto. E, contudo, ela é isso - essa gente, que, todavia, é.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

(2008/9) Símbolo em Croatto - Fenomenologia da Religião ou Teologia?

1. Conceito relevante para a Fenomenologia da Religião, o símbolo consitui um tema delicado. Tenho dúvidas quanto à procedência da definição com que Croatto trabalha em sua Introdução á Fenomenologia da Religião.

2. Croatto se aproxima do conceito de símbolo, ladeando-o por meio de uma aproximação aos conceitos de metáfora, alegoria e signo. Bem, metáfora é uma "comparação forte" - em lugar de eu dizer "esse homem é bravo como um leão", eu digo, mais diretamente, "esse homem é um leão". A alegoria, por sua vez, consiste num dizer novo como se sustentado por uma base escriturística antiga - não é por outra razão que está relacionada, na origem, à interpretação "folosófica" da tradição grega, tendo por "critério" o risco a que se submeteu a crítica filosófica de Sócrates, bem como sua condenação à morte. Trata-se, pois, de dizer coisas novas, como se fossem aquelas antigas - para as fazer, a essas coisas novas, críveis àqueles que crêem nas coisas velhas. Já o signo, por sua vez, consiste numa presentificação da idéia evocada - uma logomarca, por exemplo, ou o desenho de um chapéu na porta do banheiro de uma repartição.

3. O que há de comum entre metáfora, alegoria e signo é que tanto quem usa, quanto para quem se usa, conhecem a coisa simbolizada e a figura ou a idéia simbolizante. Se eu digo "esse homem é um leão", e não sei nem o que é homem nem o que é leão, então não disse nada. O mesmo vale para a alegoria e, ainda mais, para o signo.

4. Ora, Croatto quer-me fazer crer, que, contudo, o símbolo, diferentemente da metáfora, da alegoria e do signo, remete-se ao "desconhecido". Que ele mesmo o diga: "o símbolo diferencia-se do signo, tanto quanto da metáfora e da alegoria, por 'remeter' a algo desconhecido'" (p. 98). Na seqüência - "no âmbito da experiência religiosa, o não-conhecido em si, como é o Mistério, é captado, experimentado, intuído, no claro-escuro do símbolo". E, ainda, "o símbolo, profano ou religioso, supõe vivências conscientes e autoconhecimento" (p. 99).

5. Já o disse uma vez - quando a Teologia investe "sobre" o símbolo, não poucas vezes acaba por instrumentalizar o conceito - resultado, perde-se a Teologia, perde-se o símbolo. Veja-se o caso clássico de Paul Tillich. Em Dinâmica da Fé, ele afirmou que "Deus é símbolo para Deus". Aí, vejo duas inconsistências - uma própria de Tillich, e outra em relação ao símbolo como remissão ao "desconhecido". Na fórmula de Tillich, o sujeito teológico sumiu. A fórmula sustenta-se, apenas, por meio da "Divindade" e do "Símbolo". Mas nada se fala do sujeito religioso que intui o que, para ele, sujeito religioso, é a "Divindade", e que, também ele, criou, inventou, imaginou, o "símbolo" para aquela "Divindade". "Deus" (na fórmula, o segundo termo) é tão concreto e conhecido, para Tillich, que ele mesmo, teólogo, pode desaparecer, ao dizê-lo. Está-se aí, diante do Ser, Ser esse que se põe, que é sozinho e por si só - pura proposição teológica! -, ao passo que o crente, sujeito teológico, converteru-se em contingência desprezível e dispensável. Tillich, aí, é o contra-Feuerbach, o anti-Feuerbach, para quem Teologia é Antropologia. Para Tillich, esse, da fórmula, a Teologia dispensa a Antropologia.

6. Ora, e como Croatto pode afirmar, então, que o símbolo remete ao desconhecido? Se há algo desconhecido, sequer pensar nele é possível, quanto mais simbolizá-lo - nem mesmo é sabido se há algo desconhecido. O que Croatto chama de desconhecido, na verdade traduz a consciência teológica da existência do "Divino", que, nos termos da crença teológica, é de tal ordem - o Totalmente Outro - que, malgrado se revele (instrumentalização teológica da FR!), mantém-se ocultado (escrúpulos de conciência da teologia crente). Não há nada de fundamentalmente desconhecido, aí - pelo contrário: sabe-se, conhece-se a "Divindade", conquanto, com esse "conhecimento", co-surja a "revelação" de que ela, a "Divindade" é incomensuravelmente Maior e Além do que o "símbolo" pode dizer.

7. Eu diria que, aí, nesse arrazoado de Croatto, abandonou-se a Fenomenologia da Religião. Quem fala aí nem é - mais - Croatto: é a Teologia, Idéia encarnada, que, sem que disso se dê conta o sujeito teológico, é por ela arrastado na defesa dela. Não é boa essa FR. Conseqüentemente, para mim, não é boa, tampouco essa Teologia. A má FR nunca será tampouco boa Teologia. A má FR é o que é - má consciencia científico-humanista.

8. Se o sujeito religioso aplica símbolos a uma grandeza dada, é porque ele sabe que símbolo usar, que símbolo é adequado. Ele "sabe", ele "conhece", ele "vê" - ele até "ensina", "reproduz". Conquanto, naturalmente, não haja nada aí para ser "sabido", "conhecido" e "visto" que não a própria interpretação desse sujeito. Como o sabe Croatto - "o lugar da hierofania é, na realidade, o próprio ser humano" (p. 60). O símbolo é o laço do passarinheiro, com o qual o sujeito teológico captura sua presa. Presa sua e sua criatura.

Osvaldo Luiz Ribeiro
(Para as citações, cf. José Severino CROATTO, As Linguagens da Experiência Religiosa - uma introdução à Fenomenologi da Religião. São Paulo: Paulinas, 2001).

domingo, 14 de setembro de 2008

(2008/9) Dawkins e eu cremos igual


1. Não quanto ao ateísmo. Esse tipo de fé - ateísmo, teísmo - não posso mais sustentar. As metanarrativas religiosas, para mim, posso assumi-las, apenas, na consciência nua e crua do mito, e mito conforme o entendemos a partir das Ciências Humanas: nem "mentira" nem "verdade", tão somente "instrumento". No quesito mito teológico, padeço cada vez mais de um solipsismo noológico, e vou-me dando conta de que só o poderei manejar, doravante, no nível da conciência, por meio do regime do tipo "amigo imaginário". Assim, Dawkins e eu não dialogamos bem no campo teológico - ainda que eu aceitaria parte de seu ferramental, até o limite da indemonstrabilidade de ambos partidos.

2. O que comungo com Dawkins é a crença no "real" - e, nesse caso, com todos quanto, conosco, comunguem com essa . Permito-me citá-lo: "na vida real, nenhuma dessas decisões é arbitrária. Nenhuma delas é, de fato, uma decisão e nenhum maquinário computacional é usado para que sejam tomadas. Elas apenas acontecem, naturalmente e sem alardes. A carne de inseto é simplesmente convertida em carne de filhotes de aranha e o fator de conversão de valores simplesmente é. Se resolvermos calculá-lo posteriormente, o problema é nosso. A conversão acontece automaticamente, a despeito de alguém registrá-lo em termos matemático-econômicos ou não" (Richard DAWKINS, A Escalada do Monte Improvável - uma defesa da teoria da evolução. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 78-79).

3. Eu me sinto em casa, lendo isso. Eu me sinto cada vez mais um pedaço desse Planeta, dessa História (Prigogine, Paty, Morin). Um dia fora enfeitiçado por Platão e Descartes, e cheguei a crer que algo dentro de mim não era desse Mundo. Nietzsche e Morin me permitiram ver que mesmo essa parcela noológica da minha existência - meu pensamento e tudo quanto decorre dele: sonhos, medos, mitos, emerge do consumo dos elementos da Matéria. Logo, sou filho, a ameba, o leão e eu, dessa Terra.

4. Gosto disso. É-me libertadora essa condição. Por isso, acredito, hoje, na História e nas Ciências. Também por isso, desgosto da Teologia que aí está - e nem tanto pelo fato de ela ser má, em grande parte, porque também a Ciência o sabe ser. Não é por uma questão ético-política que me tornei filho da História e das Ciências, mas por uma questão heurística, existencial, hierofânica - uma "revelação", se quiserem. A Teologia, bem como as tendências "hermenêuticas" de estilo gadameriano-vattimoniano-rortyano, têm "nojo" do "real", e, quando dizem gostar dele, é apenas um gostar dele nos termos em que seu mito ontológico-metafício-hermenêutico o desenha.

5. A Teologia e essa que se diz Hermenêutica não são compatíveis. Não são compatíveis com nenhuma das Ciências "duras", e forçam a passagem para dizerem-se compatíveis com as Ciências "moles". Quando o conseguem, quero dizer, parecer compatíveis com as Ciências Humanas? A meu ver, apenas quando também essas "Ciências Humanas" pretendem-se suficientes, ainda que em evidente contradição com a Heuríustica. Quando as Ciências Humanas e as Ciências da Natureza dialogam - o que nos leva às Ciências Cognitivas! -, Teologia e "essa" Hermenêutica-Programa-Cosmovisão perdem todas as suas bases heurísticas, e revelam-se no que são - fé descolada e incompatível. Fé alguma vez escamoteada, outras, bravamente assumida.

6. Teólogo - ai - que sou, só me resta refletir a respeito de uma Teologia que seja - verdadeiramente - Ciência Humana. Não - ela ainda não existe. Ensaia vôos aqui e ali, ao lado da Exegese histórico-crítico-social, mas os resultados ainda são instrumentalizados para as metanarrativas religiosas de fundo, como no caso de um Hans Küng entre Teologia a Caminho e Por que ainda ser cristão hoje? Fora dessa crise, a Teologia científica ainda não sentiu as dores de parto. Imagino que não haverá parto natural aí. Se ela vier a nascer, será por meio de um cesariana. Imagino que algo como a Revolução Francesa acabará ocorrendo. Essa Revolução, burguesa, eu sei, foi a condição histórico-material para que Iluminismo, Empirismo e Romantismo pudessem construir uma nova Civilização. Não fosse ela - didaticamente falando - não teriam passado de curiosidade de gabinetes.

7. Nasci numa encruzilhada, na fenda entre duas colossais placas tectônicas. Irreconciliáveis, são elas. A política tenderá a julgar-me radical, como se pudesse haver acordo quanto à distância entre a Terra e a Lua - a "verdade" científico-humanista não é uma questão democrática, nem se faz por meio de escrutínios. Se há algo democrático nas ciências é a condição igual de todos os homens e de todas as mulheres serem aptas à empresa (elas não são sacerdotais nem clericais - conquanto, na prática, a política universitária crie ordens e paróquias!). Mas a "verdade" científica, essa independe da maioria (e da minoria), ainda que a maioria possa postergar indefinidamente - definitivamente? - uma "verdade".

8. Nesse momento, o "real" funciona, independentemente de mim. Ele estava aí, antes de mim, e aí permanecerá, depois que eu me for - aliás, quando eu voltar para ele, fundir-me com seus vaga-lumes quânticos. Nesse momento, células minhas trabalham, sem saber, "para mim". Mesmo eu funciono independentemente de mim. Meu "eu" são-me muitos. Mas Eu sou só uma pequena, ínfima, infinitesimal parcela de meu próprio mundo-eu. E, contudo, sou mesmo um só.

Osvaldo Luiz Ribeiro

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

(2008/7) Croatto - Teologia 1 x 0 Fenomenologia da Religião


1. Uma das disciplinas que leciono - uma das que mais gosto, porque foi, de longe, a mais importante em minha formação acadêmica (e, por que não confessar: também, para a compreensão racional de minha existencialidade mística) - é a Fenomenologia da Religião (FR). Passei horas e horas lendo Eliade. Em classe, tenho usado Croatto.

2. O livro de que me utilizado é As Linguagens da Experiência Religiosa - uma intodução à Fenomenologia da Religião. Tem méritos - caso contrário, não o utilizaria. Mas há momentos em que o livro deixa de constituir-se sob o regime da FR - a Teologia, sub-repticiamente, toma as rédeas.

3. Um momento de - a meu ver - formidável acerto fenomenológico-religioso de Croatto é quando ele afirma que "o lugar da hierofania é, na realidade, o próprio ser humano" (p. 60). Perfeito! Essa afirmação remete àquela outra de Mircea Eliade: "o 'sagrado' é um elemento da estrutura da consciência'" (Origens).

4. Uma página antes, contudo, Croatto resvala para a Teologia. Uma boa Teologia, uma má FR. "Na hierofania, pode-se diferenciar três elementos: uma criatura (por exemplo, uma árvore), a Realidade invisível e aquela mesma criatura que, por ser mediadora, reveste-se de sacralidade" (p. 59).

5. Trata-se de uma péssima FR. Primeiro, porque Croatto fez desaparecer o "sujeito", o mesmo que, na página seguinte, ele afirmará ser o topos da hierofania. Mas, aqui, quando quem fala, sub-=repticiamente, é o "teólogo" Croatto, o sujeito sumiu. Sumiu aqui como sumniu na fórmula teológica de Tillich: "Deus é símbolo para Deus" - o que Tillich esconde é o sujeito que, ao mesmo tempo, "cria" os dois.

6. Trata-se de uma péssima FR, porque Croatto aponta para "a Realidade invisível". Ora, isso a que Croatto se refere como "a Realidade invisível" não constitui uma objetividade, mas o resultado interpretativo e criativo da "experiência do sagrado" - experiência de consciência, sem conteúdo, que exige do "hierofante" a "invenção" da narrativa que dê conta da "experiência". O sujeito religioso - que Croatto fez sumir - contaria, em seu relato sobre sua experiência, que ele viu alguma coisa que, vindo de algum lugar, apareceu na árvore, e depois sumiu, e ficou só a árvore, agora, sagrada". É o sujeito religioso, apenas, que "vê" o que ele traduzirá, a seu modo e cultura, por meio do símbolo que lhe melhor parecer adequado. Mas a FR não vê nada.

7. Trata-se de uma péssima FR, porque Croatto é capaz de falar de uma árvore mediadora - sua faculdade de ser medium e que a torna sagrada. Mas "mediadora" para quem, se Croatto fez sair da cena hierofânica o seu único fundamento - o sujeito?

8. Para salvar o parágrafo, Croatto deveria ter dito que falaria a partir da perspectiva do sujeito, não da FR. Mas, como abduziu o pobre hierofante e lhe roubou a própria experiência, só resta-me admitir que Croatto pensa falar fenomenologicamente - mas, então, equivocadamente fenomenologicamente.

9. Para falar de forma adequadamente fenomenologicamente, Croatto deveria dizer que há dois elementos na hierofania: o sujeito e o objeto. O mais é interpretação e criatividade incontornáveis do sujeito. E é o que ele dirá mais adiante: "cada mediação revela (má palavra!) uma modalidade do sagrado e uma situação particular do ser humano com respeito a ele" (p. 71). Aí estão os dois únicos elementos da hierofania com que a FR pode - o sujeito e a mediação. Se substituirmos o verbo "revela", teologicamente suspeito, por "permite a interpretação de" (é a consciência do sujeito que "manifesta" o sagrado, é o sujeito que o interpreta), resultaria muito boa essa síntese programática - e "revelaria" que, na p. 59, Croatto permitira-se o descuido do ri9gor terminológico, do foco epistemológico, posto que, lá, fala como teólogo, posição em que se encontra tão à vontade que não se deu conta, nem na revisão do livro, de que, ali, pecava contra a FR.

10. Por isso, recomendo, ainda a obra, mas com a seguinte ressalva grave: todo o Capítulo II - A Experiência Religiosa: descrição e implicações (p. 41-79) deve ser lido muito criticamente, com severas correções em vários pontos. Hoje, durante a aula, um aluno chegou a perguntar por que cargas d'água, então, eu recomendara um livro que, a todo tempo, eu corrigia. Respondi que o livro, como um todo, tem vantagens - seus capítulos sobre o simbolo, o rito e a doutrina são muito bons, e, particularmente, o sobre o mito, é extraordinariamente bom. De mais a mais, não se lê um livro para enfiar na cabeça cada sentança sua. Lê-se criticamente. Esse Croatto, também.

Osvaldo Luiz Ribeiro

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

(2008/6) O todo, as partes e a exegese


1. Se tomo um texto da Bíblia Hebraica - e, de resto, qualquer texto antigo - como "objetivação de consciência". Se tomo esse texto como "estratégia de intervenção social" - fala teleologicamente situada. Se assumo que não se trata de "literatura". Então devo proceder à sua leitura por meio do ferramental histórico-crítico, sob orientação dos pressupostos teórico-metodológicos da abordagem histórico-social e fenomenológico-religiosa.

2. Pois bem - o que tenho, agora, diante de mim? Se o texto passa a ser tratado, fenomenologicamente, como objetivação de consciência, o que ele se tornou? Dizendo-o de modo simples - o texto recuperou sua situação original. Mais do que uma intenção original, ele recuperou sua situação de origem. A sua situação de origem é muito mais importante, heuristicamente, do que sua intenção, porque esta é função daquela. É porque está nessa situação que essa é a sua intenção. "Longe de ser apenas um auxiliar útil à compreensão das mensagens, o contexto é o próprio alvo dos atos de comunicação" (Pierre LÉVY, As Tecnologias da Inteligência - o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: 34, 1993, p. 21).

3. O objeto que tenho na mão transforma-se. De repente, de uma página de celulose e tinta, deparo-me com um objeto híbrido - constituído tanto de seres físicos - papel e tinta -, como de seres de espírito - símbolos, história, fatos - e de organização - sintaxe, conflitos. O texto em si, apresenta-se-me como um quebra-cabeça. O todo do texto carrega a objetivação da consciência, que, por sua vez, espraia-se, como gosma, por todas as palavras. O todo, não o posso capturar, como numa experiência estética, mas capturar/recuperar/reconstruir analiticamente/sinteticamente - indiciariamente.

4. Tenho de juntar palavra a palavra e, juntando-as, juntá-las às outras, e, assim, ir construindo uma rede sintático-semântica. O todo que vou gerando, lentamente, vai corrigindo o sentido das partes, enquanto o sentido das partes vai-me proporcionando a construção do todo. O processo não tem "começo" - entro, ao mesmo tempo, em partes provisórias e num todo provisório.

5. E tudo isso precisa, agora, e desde o início, ser relacionado com a consciência que se objetiva aí - a intenção que anima o jogo sintático e a dança das palavras. Intenções definem sentidos. A intenção, contudo, não está no papel, mas na estrutura argumentativa, na retórica, nos objetivos que o texto guarda por expectativa. Na consciência do autor, ser de espírito - no texto, ser de organização!

6. Mas, ainda ai, faltam elementos, os quais não estão nem na consciência do autor, nem no papel, mas em torno do autor, de seu corpo, no mundo em que ele vive. Sua intenção, que tenho que recuperar por meio da organização das partes com o todo e do todo com as partes, dirige-se a um momento preciso, a pessoas precisas, dentro de uma tradição e cultura peculiares. Se não os recupero, não tenho nada - só fantasmas polissêmicos, em outras pragmáticas,´legítimas, mas não aqui.

7. Assim, a exegese histórico-social, de caráter fenomenológico, trabalha, ao mesmo tempo, com três elementos, nenhum deles dispensável - o texto, a consciência objetivada nele e a situação em que, teleologicamente, ela/ele se inserira. A consciência subjetiva objetivada nele dirige-se àquela situação, e sua chave hermenêutica é - apenas - essa situação. Esta, anafórica em relação ao texto, precisa ser recuperada desde o texto, para, como lamparina bruxulenante, iluminar a consciência ressuscitada. O texto é o topos onde o exegeta se situa para reconstruir ambas, e - finalmente - interpretá-lo à luz desse critério.

8. Não há pretensão de inerrância no processo, logo, no resultado. Nem tampouco desprezo quanto à sua necessidade e possibilidade teórico-metodológicas. Há limites - o exegeta jamais terá certeza de ter reconstruído rigorosamente o triângulo relacional histórico-fenomenológico consciência/situação/texto. Poderá, eventualmente, ser informado de que cometeu um erro. Nesse caso, terá avançado, porque saber que errou é uma situação melhor do que não saber se acertou. Como nunca saberá se acertou - ainda que esteja disposto a dar um braço em defesa de sua hipótese de trabalho - resta-lhe caçar erros. A sina exegética - a crítica inesgotável.

9. Por que, meu Deus, só escolho fazer o que da angústia se enamora?


Osvaldo Luiz Ribeiro

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

(2008/5) Do sagrado - um olhar sobre Croatto


1. "Todo fenômeno religioso é uma hierofania" (José Severino CROATTO, As Linguagens da Experiência Religiosa - uma introdução à Fenomenonologia da Religião. São Paulo: Pauinas, 2001, p. 71). Essa declaração de Croatto consta do primeiro dos seis tópicos com que resume as seções de um a três de seu capítulo "As Experiências Religiosas - Descrições e Implicações" (p. 41-72). Seu contexto comunicacional (pragmático), portanto, é a Fenomenologia da Religião (FR) como disciplina das Ciências Humanas, cujo objeto de investigação é constituído pelo fenêmeno religioso,~não reduzido teórico-metodológico a seus constituintes psico-antropo-sociológicos, mas observado a partir de "si mesmo".

2. Sendo assim, penso que há um problema com a afirmação de Croatto. Há um erro de referência, eu diria, grave. O mesmo que Tillich comete em sua famosa fórmula "Deus é símbolo para Deus". Em ambas as afirmações (Croatto e Tillich), o sujeito que funda o objeto sob estudo está escondido. Escondido o sujeito, é como se houvesse - de fato e assentadamente - Deus, fora dele, e hierofania, independentemente dele. Ora, quanto a Deus, não se sabe, nem se pode saber, se existe fora da fé do sujeito crente - nem que não existe, dada a fé do sujeito ateu. Nem uma fé nem outra podem asseverar - logo, tornar "dado científico", a sua "crença" - a existência ou a não existência de Deus. Do mesmo modo, a FR não conhece nenhuma hierofania, sequer pode afirmar que um, dois, dez, todos os fenômenos religiosos o sejam. Quem o diz - e por isso a FR estuda isso que o sujeito "crente" afirma ter sido uma hierofania.

3. Croatto, contudo, transformou, com seu modo de dizer a coisa, a hierofania em "coisa" dada. Ora, ora, ora - a FR pode estudar fenêmonos religiosos, mas, não, hierofanias. Ela pode estudar os documentos gerados pela interpretação das pessoas e, desde aí, reconstruir o que seriam, estruturalmente, tais hierofanias - com postulados teórico-metodológicos (como o de Mircea Eliade: "o 'sagrado' é um elemento da estrutura da consciência" (Origens). Mas não me parece adequado que a FR possa afirmar que cada fenômeno religioso seja uma hierofania. Ela poderia dizer que, nos termos em que assim o experimenta o sujeito crente particicipante, cada fenômeno religioso desdobra-se a partir de experiências do sagrado.

4. Mas, ainda assim, conquanto, quer-me parecer, mais teórico-metodologicamente adequada, a formulação deve ser aperfeiçoada. Porque a FR não é ingênua, nem recolhe, inadvertidamente, os testemunhos/documentos humanos. A FR sabe que os mitos, ritos e doutrinas - logo, as narrativas - constituem interpretações humanas, projetadas a partir e sobre a experiência do sagrado. Logo, de imediato, surge o problema da distinção entre experiências do sagrado que, eu diria, de primeiro nível, e experiências do sagrado, então, de segundo nível.

5. Experiências do sagrado (fenômenos da extrutura da consciência, nos termos de Eliade) de primeiro nível são experiência do sagrado que acontecem como inaugurais, fundantes, para as quais o "hierofante" (de primeiro nível) não tem discurso, conceito, explicação. Tudo, aí, terá de ser inventado, imaginado, narrado, do zero. Quer dizer, nos termos tanto de Eliade, quanto de Croatto, desde as características culturais/pessoais do sujeito hierofante, até as caracteríticas do objeto profano através do qual (gatilho) a experiência do sagrado consubstanciou-se. Diria que, hoje, no planeta, inexistem experiências desse tipo. Há culturas não "civilizadas" - mas não culturas não-religiosas. As experiências do sagrado "nuas", imagináveis apenas na condição de fenômeno necessário da história humana, essas, acabaram.

6. Experiências do sagrado de segundo nível são aquelas que se desdobram dentro de narrativas já em processo de consolidação ou totalmente consolidadas - são litúrgicas. Nessa cultura, o sagrado (elemento da estrutura da consciência) já foi "coisificado" (energizado, animado, personificado), já recebeu nome, identidade, função, forma, modalidade. O "novo", aí, torna-se heresia. A domesticação das "hierofanias" fundantes como que oblitera a diversidade das modalidades do sagrado, ele se petrifica, deifica. Por mais "forte" e "poderoso" com que se apresente o seu aspecto, trata-se, aí, de uma domesticação tribal.

7. Do ponto de vista da Sociologia da Religião, não faz diferença (trata-se do mesmo "fato social", igualmente eficiente). Do ponto de vista da Psicologia da Religião, não faz diferença (trata-se do mesmo fenômeno da psiquê). Do ponto de vista da Antropologia da Religião, não faz diferença (trata-se, em ambos casos, de cultura). Do ponto de vista da Fenomenologia da Religião, sim, faz - e muita - diferença. Experiências do sagrado podem emergir em contextos litúrgicos, mas são de caráter diferente daquelas de caráter fundante - pré-litúrgicos. As liturgias são encontros marcados - lugar, dia e hora - com o "divino", hipostasiado e domesticado (Feuerbach); hierofanias fundantes são irrupções inusitadas, fenômenos de consciência sem absolutamente qualquer conteúdo - que implicarão em construções de conteúdo (Eliade). Poderão desdobrar-se em liturgias - nesse caso, passarão, todas, pelas fases de mito, rito e doutrina (Feuerbach). Mas, eventualmente, alternativamente, em arte - e mesmo, em política (cf. a liturgia, o mito, o rito e as doutrinas dos hinos nacionais das repúblicas modernas - "Pátria amada, idolatrada, salve, salve").

8. Não chegaria a dizer que é inquestionável que Croatto cede à tentação "teológica" de legitimar "Deus" e a "religião" por meio da Fenomenologia da Religião. Mas Frank Usarski, crítico feroz do uso teológico da FR, encontraria nessa síntese de Croatto uma "prova" do que ele considera o epitáfio da Fenomenologia da Religião de "tipo" clássico - fraude da espiritualidade protestante.

Osvaldo Luiz Ribeiro

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

(2008/4) "O Além-filosófico de Marx" - de Morin


1. "O gênio de Marx não se deve tanto ao fato de ter criticado a filosofia do ponto de vista da ciência e da ação; esta crítica já estava em curso. Deve-se ao fato de nem ter abandonado totalmente a filosofia, nem aderido totalmente à ciência, nem toalmente aderido à ação ou ao vivido. O gênio de Marx deve-se ao fato de, no que nomeava práxis, ter querido associar, entrefecundar, entredilacerar a filosofia, a ciência e a ação. Esta associação dialética é tão audaciosa, tão instável, que o marxismo tende naturalmente a se decompor em filosofismo, em cientificismo, em pragmatismo. E, na pior das hipóteses, a conservar em si, de maneira heterogêna e incoerente, somente as formas mais degradadas do filosofismo (sistema fechado, abstrato e dogmático), do cientificismo (materialismo reificador), do pragmatismo (a ação do partido, critério de toda verdade).

2. Marx quis dialetizar reciprocamente filosofia-ciência-ação. Quis confrontar o espírito de totalidade (filosofia) com o saber hipotético, empírico, parcelar e abstrato (ciência), e com o vivido (ação, existência).

3. É nesta dialetização recíproca que reside a possibilidade não de eliminar a magia de uma vez por todas, mas de superá-la constantemente. Pois esse é o único meio de evitar essas petrificações denominadas cientificismo, filosofismo e pragmatismo.

4. Esse é, ao mesmo tempo, o único meio de aspirar à totalidade, sem sucumbir ao mito da totalidade. A confrontação dialética entre filosofia, ciência e experiência vivida nos ensina que não há verdade senão total, isto é, ao mesmo tempo de conformidade com a exigência filosófica, a verificação científica e as necessidades profundas do ser humano. Mas ela nos ensina igualmente que esta verdade está fora de nosso alcance. Ela nos impele a reconhecer os limites (atuais ou "eternos", pouco importa) de nosso espírito e de nossa vida. O homem deve ultrapassar suas particularidades para tender em direção ao universal concreto. Mas o universal concreto continuará sempre seu mito, porque o homem, em certa medida, permanece sempre particular e abstrato. O homem universal, o homem total, o homem deus, reconciliado com a natureza e consigo mesmo, é uma impossibilidade prática que só pode chegar a seu termo com a supressão do homem enquanto homem (possibilidade futura de modo algum excluída).

5. O homem é o ser mais limitado que existe, já que o mais individualizado. Mas, ao mesmo tempo e por isso mesmo, é o ser cuja necessidade é a mais ilimitada, a mais universal. Esta contradição é o próprio tecido de nossa condição. Não foi senão com toques de varinha mágica que religiões e filosofias acreditaram suspender ou conciliar a contradição. De fato, o momento da reconciliação é o momento em que o pensamento passa ao ponto morto; suprimir o ânodo ou o cátodo significa interromper a eletrólise. Mas a aceitação imbecializada ou desesperada da contradição é uma espécie pior de morte intelectual.

6. O que fazer? Como dizer? É necessário ao mesmo tempo aceitar o que se recusa e recusar o que se aceita. É preciso exigir a totalidade e negá-la.

7. Hoje, o pensamento que quer situar-se no cerne da dialética filosofia-ciência-ação-existência deve pretender-se não apenas como pensamento planetário, mas como pensamento antropo-micro-macroscópico. Três universos de pensamento estão atualmente à deriva uns dos outros: o universo da ciência macroscópica, em que nosso espaço e nosso tempo de dissolvem nos horizontes galácticos; o universo da ciência microscópica, em que a matéria se dissolve em antagonismos energéticos antes de deixar reaparecer novos micro-universos; o universo do pensamento antropológico, em que dissolvemos desesperadamente tudo o que nos ensina a microscopia e a macroscopia, em que fingimos ignorar os dois infinitos que nos assaltam. Loucura ignorar dois destes três universos. A tarefa primeira de todo pensamento que aspira à totalidade não é buscar a unidade nesta contradição de três faces? Não é buscar esta contradição de três faces na aparente unidade antropológica? É neste sentido que deveríamos partir em busca de novas verdades. Poderemos, saberemos alcançá-las? De qualquer forma, é neste sentido somente que poderemos superar, com perseverança, as ondas da magia que incessantemente renascem. E é neste sentido que reconheceço e aceito a mensagem filosófica e antifilosófica, cientificista e anticientificista, existencial e anti-existencial, pragmática e antipragmática de Karl Marx".

8. Também eu, Morin, meu amigo, também eu.

Osvaldo Luiz Ribeiro

(Edgar MORIN, "O além-filosófico de Marx", em: Edgar MORIN, Em Busca dos Fundamentos Perdidos - textos sobre o marxismo. 2 ed. Porto Alegre: Sulinas, 2004, p. 55-60).

terça-feira, 26 de agosto de 2008

(2008/3) Não "esse" mito - mas o mito

1. Jimmy acabou de sair. Foi tratar uma dor e uma febre. Os dois, esfriar a cabeça. Uma longa e agradável conversa, ainda que cansativa, posto que demandou muito de nós, sobre mito e cultura, cristianismo e as saídas da modernidade.

2. Gadamer e eu, no fundo, estamos dizendo a mesma coisa? Quando Gadamer afirma a cultura como "mito", mas assenta, ainda assim, a tradição - também como mito -, ele não está, afinal, fazendo o mesmo que eu?, ou, seria melhor dizer, eu, a mesma coisa que ele?

3. É ler de novo Gadamer. Não saberia resolver essa questão agora. Mas uma coisa deve ficar clara. Minha postura é alguma coisa para além e a partir de Nietzsche e Morin, os dois, somados, e para além dos dois. Assumo a presença inexorável do mito, mas me recuso a assumir qualquer uma concretização deles, mesmo as minhas, como "o estar aí". Nada de viver dentro de mitos como se fossem, afinal, coisas, esses mitos, esses, e não outros, as narrativas desses mitos, não eles em si, seus conteúdos, seus discursos, seus mundos, regiões incontornáveis, como se o ser do homem e da mulher ocidentais fosse, por exemplo, o ser cristão - falácia, já que, ser cristão, então, é, antes, ser grego, e, antes disso, vai-se saber. Escolher um ponto de partida para dar de ombros é arbitrário.

4. Contudo, assumir, como Nietzsche e Morin, que não há modelos, nem certezas, apenas uma longa estrada aberta e escura pela frente, e assumir que caminhar por ela - mesmo ela! - só é possível no mito, dizer isso não é a mesma coisa que dizer que esse mito aqui, ou aquele, o cristão, ou o ocidental, seja qual for, deva ser o mito para essa travessia, nem que, mito por mito, tanto faz então que seja esse em que nos descobrimos atolados.

5. O que me parece real é que, caramujos, segregaremos gosma eternamente. Mas a cor dela, seu cheiro, sua textura, seu gosto, isso dependerá de nós, das negociações históricas, da criatividade, da coragem, da abertura.

6. Tenho consciência das repercussões políticas dessa proposição existencial. Sei que ela derruba todos os fundamentos retóricos dos últimos dois mil e quinhetos anos. Mas não estou disposto a repetir a retórica alternativa da manutenção de determinados mitos - o do Soberano, por exemplo - como solução para o medo da dissolução das instituições ou a emergência da barbárie. Teologia e Política estão juntas a tanto tempo que sinto o cheiro da necrose no ar - e, contudo, a sociedade, não.

7. Que seja. Posso viver solitário, conquanto negocie relações sociais. Esse não é o problema. O problema é intuir que o útero vai esgarçando, as contrações, acelerando-se, as dores, multiplicando-se, mas os homens, ah, esses não querem, não, nascer.

8. É frio e solitário aqui fora. Felizes os que têm sacerdotes a lhes ninar mitos ao colo.

9. Jimmy, fica bom logo. E vamos, de novo, beliscar os calcanhares do diabo.

10. Bel, te amo.

Osvaldo Luiz Ribeiro

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

(2008/2) Alucinação e representação


1. "Não há diferença intrínseca, ao nível da representação, entre alucinação e percepção, mas a diferença é capital quanto ao sentido de ambas, e principalmente quanto a seu sentido de realidade ou de verdade" (Edgar MORIN, Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 28).

2. Todo sonho é real e verdadeiro. Toda alucinação é real e verdadeira. O serão, igualmente, todas as representações? Naturalmente que não. Sonhos e alucinações, são "imagens em ação" - imaginações, fantasmas da nossa mente, que fogem dela, e dançam diante de nós. Nós, alguma parte de nós, alguém dentro de nós, as produzimos. O mundo é ali representado, personagens, cenário, enredo, e tudo dança o seu folclore. Tudo é possível. Voar, morrer, sorrir, correr.

3. Conta-se aquela história do monge, deitado sob a sombra de uma árvore, que sonha ser uma libélula, sonhando que é um monge deitado à sombra de uma árvore, que, por sua vez, sonha ser uma libélula que sonha... Quando ele acorda, não sabe mais se é um monge acordado ou uma libélula sonhando que é um monge acordado. Ora, a história é interessante para pôr sob transparência o jogo intercomunicativo entre realidade e imaginação, mas deliberadamente esconde o fato de que, no sonho, tudo é possível, ao passo que, na vida, não. É por isso que sempre se sabe quando se está sonhando, quando se está desperto. Salvo, sob determinadas patologias da percepção/representação.

4. A consciência, o sistema cérebro-representacional, a linguagem, a memória, são sistemas que nos garantem, de uma lado, a movimentação crítica sobre o "real", ao mesmo tempo em que facultam-nos o que nos é propriamente humano - a fantasia e a imaginação. Num ponto, o sistema, as duas dimensões humanas se tocam, intercontaminam-se. Não posso viver no mundo real sem projetar sobre ele minha tela hermenêutica, meu mito. Por outro lado, não posso inventar mitos de todo descolados do real. Mesmo os mitos mais extravagantes precisam de pontos de contato com a realidade.

5. Não há como sair dessa situação. Vivemos no mundo real por meio das representações, que não constituem, contudo, nem fac-símiles do "real", nem delírios da consciência, mas uma bricolagem de realidade e mito. O risco que sempre corremos é: ou tomar as representações como a própria realidade (ilusão da idéia) ou recusar-se a admitir que são as idéias que nos colocam em contato com o real (ilusão do real).

6. O século XX conheceu o furor das representações, a simplificação do sistema, e o delírio do recalque da realidade. Sistemas filosóficos inteiros tornaram-se cínicos, a ponto de afirmar, sem pudor, a inexistência do "real", ou, o que é o mesmo, a sua prescindibilidade epistemológica. Para tais delírios filosóficos, os homens e as mulheres vivem apenas dentro de suas próprias cabeças, e o "mundo" não passa de projeção psicológica humana.

7. Quanto a mim, não há absolutamente nada nesses sistemas filosóficos que me atraia. Passo ao largo deles - e me aproximo tão-somente para os observar (em sentido clínico). Sonhos e delírios são todos verdadeiros. Se você sonha que um elefante voa, é certo que ele voa. Se você sonha que uma alface é vermelha, está correto - ela é vermelha. Sonhos e delírios são mundos apenas nossos, que, em algum nível do "nós", nós criamos. Eles são como as alegorias, cuja verdade já é minha antes de eu, apropriando-me alegoricamente da polissemia de um texto, criar, sobre ele, uma atualização de sentido. Não há alegorias erradas. Todas, como os sonhos, são verdadeiras - como os delírios.

8. As representações, não. Elas devem ser analisadas sob os critérios de sua própria dimensão constituinte. No sonho, posso atravessar paredes e voar. Na vida real, não - por mais que minha imaginação seja fértil. Uma vez que tenhamos medido, em metros, uma distância, a menos que eu mude a distância ou fraude a régua, seja eu, seja qualquer outro morador humano do mundo, em metros, obteremos a mesma medida. Ora, metro é uma medida arbitrária. A distância, não. A distância está lá fora. A medida, cá dentro. Quando uso a medida para medir a distância, crio uma relação própria das representações, cujo critério é a adequação, a compatibilidade, a fecundação.

9. Deve haver algo de freudiano na síndrome contemporânea da fuga do real.


Osvaldo Luiz Ribeiro

domingo, 24 de agosto de 2008

(2008/1) Caramujo - mundo, mito e mística


(Ouvindo Rain, de Breaking Benjamin)

1. Ler O Método foi submeter-me a um ritual de iniciação ao mesmo tempo mística e racional. De magnitude semelhante, apenas o Tratado de História das Reigiões, de Mircea Eliade. Seguindo as pegadas do bruxo francês, meus pés caminharam e caminham por veredas cada vez mais críticas e fenomenológicas, racionais e complexas, ainda que, ainda assim - por isso! - sempre cada vez mais mágicas, místicas, míticas, maravilhosas. Ele mesmo o disse - "sou racional e místico". E eu, Morin, e eu!

2. A realidade profunda do Mito tomou-se, como uma entidade africana - mas me deixou acordado. Contaminou-me, como um vírus tropical - mas me deixou saudável. Incendiou-me - mas com o fogo de miríades de pirilampos e fogos-fátuos. Colocou-me na posição de estar, a um só tempo, ontem, hoje e amanhã, criança e ancião. E, dentre todos os seres do Universo, descobri-me caramujo, a cobrir de gosma a carne do mundo. Qual é a minha casa? A que carrego nas costas, mítica, mágica, mística, noológica, feérica, ou esse carbono telúrico parido no útero do meu Sol amarelo, essas plagas desérticas de sentido, polvilhadas de mistério? Nem uma nem outra - as duas.

3. Viver no mito, sem daí jamais poder sair, é um tema de uma página espetacular de Morin, dessas que entram no nosso sangue, deslocam-se para um canto de nossas mitocôndrias contra-cartesianas e passam a ser queimadas incessantemente, misturadas ao oxigênio que nos mantém vivos. "Não podemos escapar aos mitos" - é assim que ela, impudica flor, se abre, lúcida, lúbrica, lúdica. "O nosso problema consiste em reconhecer, nos mitos, a realidade deles, e não a realidade; reconhecer a verdade deles, e não reconhecer a verdade" - ou seja, a verdade está em que é por meio dos mitos (a gosma do caramujo que me descobri ser) que nos movemos sobre e sob o real, quando agarramos sua garganta, ou quando voamos para longe dele, independentemente da "verdade" com que esses mitos nos encantam - o que é "real" e "verdadeiro" é que vivemos neles e por meio deles. A vida é um MMORPG que não acaba nunca - mas que pode acabar a qualquer momento.

4. Mais adiante, Morin desfere mais uma estocada: "não devemos acreditar que nos possamos situar acima dos mitos". Sim, porque não há um modo de sair daí, um jeito de separar de nós a gosma que desprendemos - salvo a morte, e, ainda assim, a nossa, porque também a de outrem dá-se dentro deles. As "verdades" - e as há! - serão, sempre, situadas, locais, perspectivísticas (aprendi a usar esse termo com Nietzsche). A sanidade é reconhecer que não há como chegar à perspectiva de verdades absolutas e a-míticas, tanto quanto não é verdade que não há nenhuma sorte de qualquer tipo de verdade. Há verdades, mas, sempre, "situadas", "históricas", alguma coisa entre observadas e construídas, ao alcance de nossas mãos, sempre eroticamente enoveladas por nossa gosma hermenêutica.

5. Para mim, um teólogo de formação, um doutor em sua profissão, é curioso que quanto mais fundo tenha eu cavado, tanto mais diáfano e transparente tenha se tornado o antigo objeto de minha disciplina. O que me faz concordar, em todos os sentidos, com as palavras com que Morin encerra aquela página (uma dia ela foi de celulose, hoje, de hemoglobina):

6. "Uma (...) conseqüência decorre disso, para mim. A de acabar com o antigo ateísmo... Estou e continuo sem Deus, mas sei que não existe um ponto de vista depurado de todo mito ou crença, do qual se possa considerar com desprezo o mito e a crença. O ateu deve descobrir sua crença - principalmente sua crença na razão -, seu fundamento irracionalizável, e relacionar-se com ela. Assim, nós, neo-ateus, podemos pedir aos crentes que se tornem neocrentes, isto é, que estabeleçam uma nova relação com seus(s) Deus(ses)".

7. Não posso me chamar um neo-ateu, já que nunca fui ateu, e penso seriamente ter-me tornado absolutamente imprestável para qualquer tipo de ateísmo - nem esse novo neo-ateísmo. Não saberia imaginar viver sem a consideração mística e mítica do Inefável, ainda que me controle bravamente para não trazer à tona a loucura desse pathos. Lido com ele dentro de mim, em meu mito diário, e, espero que isso seja compreensível a outros tanto quanto a mim, nos momentos de dor - que a vida é cruel como o louva-a-deus a devorar, viva, a sua presa - enquanto louva o Criador.

8. Por outro lado, não poderia, Morin, igualmente, aceitar ser chamado de neocrente. Não é - mais - "crença" que tenho. Tenho cá, na mão, no olho, no rim, no coração, vai, no cérebro, um pote de mitos, e os deuses estão entre eles. Deuses na ante-sala, e, devo confessar, lá no fundo, solitário como eu, Deus. Mas isso é mito para mim. Não defenderia isso. Não ensinaria isso. Apenas deixaria ser-me flagrado brincando com isso - e vivendo assim, porque isso sou eu.

9. Nesse caso, amigo alquímico, aceite que eu adapte sua fórmula/proposta a meu jeito. Não é - mais - crença que carego, nem descrença. É uma presença mítica, mística, mágica, como todos os elfos e sílfides, trasgos e quimeras da noite do mundo. Não recusaria tratar tal idéia - tal mito - no campo dos amigos imaginários. Tão somente não gostaria que ele fosse embora, mas que ficasse aí, olhando-me a correr em campos de trigo de Van Gogh e nos mundos de Dali.

10. Basta-me isso. Mas não menos do que isso.


Osvaldo Luiz Ribeiro

(As citações foram extraídas de: Edgar MORIN, Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 273)