segunda-feira, 25 de agosto de 2008

(2008/2) Alucinação e representação


1. "Não há diferença intrínseca, ao nível da representação, entre alucinação e percepção, mas a diferença é capital quanto ao sentido de ambas, e principalmente quanto a seu sentido de realidade ou de verdade" (Edgar MORIN, Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 28).

2. Todo sonho é real e verdadeiro. Toda alucinação é real e verdadeira. O serão, igualmente, todas as representações? Naturalmente que não. Sonhos e alucinações, são "imagens em ação" - imaginações, fantasmas da nossa mente, que fogem dela, e dançam diante de nós. Nós, alguma parte de nós, alguém dentro de nós, as produzimos. O mundo é ali representado, personagens, cenário, enredo, e tudo dança o seu folclore. Tudo é possível. Voar, morrer, sorrir, correr.

3. Conta-se aquela história do monge, deitado sob a sombra de uma árvore, que sonha ser uma libélula, sonhando que é um monge deitado à sombra de uma árvore, que, por sua vez, sonha ser uma libélula que sonha... Quando ele acorda, não sabe mais se é um monge acordado ou uma libélula sonhando que é um monge acordado. Ora, a história é interessante para pôr sob transparência o jogo intercomunicativo entre realidade e imaginação, mas deliberadamente esconde o fato de que, no sonho, tudo é possível, ao passo que, na vida, não. É por isso que sempre se sabe quando se está sonhando, quando se está desperto. Salvo, sob determinadas patologias da percepção/representação.

4. A consciência, o sistema cérebro-representacional, a linguagem, a memória, são sistemas que nos garantem, de uma lado, a movimentação crítica sobre o "real", ao mesmo tempo em que facultam-nos o que nos é propriamente humano - a fantasia e a imaginação. Num ponto, o sistema, as duas dimensões humanas se tocam, intercontaminam-se. Não posso viver no mundo real sem projetar sobre ele minha tela hermenêutica, meu mito. Por outro lado, não posso inventar mitos de todo descolados do real. Mesmo os mitos mais extravagantes precisam de pontos de contato com a realidade.

5. Não há como sair dessa situação. Vivemos no mundo real por meio das representações, que não constituem, contudo, nem fac-símiles do "real", nem delírios da consciência, mas uma bricolagem de realidade e mito. O risco que sempre corremos é: ou tomar as representações como a própria realidade (ilusão da idéia) ou recusar-se a admitir que são as idéias que nos colocam em contato com o real (ilusão do real).

6. O século XX conheceu o furor das representações, a simplificação do sistema, e o delírio do recalque da realidade. Sistemas filosóficos inteiros tornaram-se cínicos, a ponto de afirmar, sem pudor, a inexistência do "real", ou, o que é o mesmo, a sua prescindibilidade epistemológica. Para tais delírios filosóficos, os homens e as mulheres vivem apenas dentro de suas próprias cabeças, e o "mundo" não passa de projeção psicológica humana.

7. Quanto a mim, não há absolutamente nada nesses sistemas filosóficos que me atraia. Passo ao largo deles - e me aproximo tão-somente para os observar (em sentido clínico). Sonhos e delírios são todos verdadeiros. Se você sonha que um elefante voa, é certo que ele voa. Se você sonha que uma alface é vermelha, está correto - ela é vermelha. Sonhos e delírios são mundos apenas nossos, que, em algum nível do "nós", nós criamos. Eles são como as alegorias, cuja verdade já é minha antes de eu, apropriando-me alegoricamente da polissemia de um texto, criar, sobre ele, uma atualização de sentido. Não há alegorias erradas. Todas, como os sonhos, são verdadeiras - como os delírios.

8. As representações, não. Elas devem ser analisadas sob os critérios de sua própria dimensão constituinte. No sonho, posso atravessar paredes e voar. Na vida real, não - por mais que minha imaginação seja fértil. Uma vez que tenhamos medido, em metros, uma distância, a menos que eu mude a distância ou fraude a régua, seja eu, seja qualquer outro morador humano do mundo, em metros, obteremos a mesma medida. Ora, metro é uma medida arbitrária. A distância, não. A distância está lá fora. A medida, cá dentro. Quando uso a medida para medir a distância, crio uma relação própria das representações, cujo critério é a adequação, a compatibilidade, a fecundação.

9. Deve haver algo de freudiano na síndrome contemporânea da fuga do real.


Osvaldo Luiz Ribeiro

Um comentário:

Elias Aguiar disse...

O Peroratio e o Devarim ficaram
"pequenos", Mestre?

:)

Boa semana!

Abraços fraternos,
Elias Aguiar