quarta-feira, 27 de agosto de 2008

(2008/4) "O Além-filosófico de Marx" - de Morin


1. "O gênio de Marx não se deve tanto ao fato de ter criticado a filosofia do ponto de vista da ciência e da ação; esta crítica já estava em curso. Deve-se ao fato de nem ter abandonado totalmente a filosofia, nem aderido totalmente à ciência, nem toalmente aderido à ação ou ao vivido. O gênio de Marx deve-se ao fato de, no que nomeava práxis, ter querido associar, entrefecundar, entredilacerar a filosofia, a ciência e a ação. Esta associação dialética é tão audaciosa, tão instável, que o marxismo tende naturalmente a se decompor em filosofismo, em cientificismo, em pragmatismo. E, na pior das hipóteses, a conservar em si, de maneira heterogêna e incoerente, somente as formas mais degradadas do filosofismo (sistema fechado, abstrato e dogmático), do cientificismo (materialismo reificador), do pragmatismo (a ação do partido, critério de toda verdade).

2. Marx quis dialetizar reciprocamente filosofia-ciência-ação. Quis confrontar o espírito de totalidade (filosofia) com o saber hipotético, empírico, parcelar e abstrato (ciência), e com o vivido (ação, existência).

3. É nesta dialetização recíproca que reside a possibilidade não de eliminar a magia de uma vez por todas, mas de superá-la constantemente. Pois esse é o único meio de evitar essas petrificações denominadas cientificismo, filosofismo e pragmatismo.

4. Esse é, ao mesmo tempo, o único meio de aspirar à totalidade, sem sucumbir ao mito da totalidade. A confrontação dialética entre filosofia, ciência e experiência vivida nos ensina que não há verdade senão total, isto é, ao mesmo tempo de conformidade com a exigência filosófica, a verificação científica e as necessidades profundas do ser humano. Mas ela nos ensina igualmente que esta verdade está fora de nosso alcance. Ela nos impele a reconhecer os limites (atuais ou "eternos", pouco importa) de nosso espírito e de nossa vida. O homem deve ultrapassar suas particularidades para tender em direção ao universal concreto. Mas o universal concreto continuará sempre seu mito, porque o homem, em certa medida, permanece sempre particular e abstrato. O homem universal, o homem total, o homem deus, reconciliado com a natureza e consigo mesmo, é uma impossibilidade prática que só pode chegar a seu termo com a supressão do homem enquanto homem (possibilidade futura de modo algum excluída).

5. O homem é o ser mais limitado que existe, já que o mais individualizado. Mas, ao mesmo tempo e por isso mesmo, é o ser cuja necessidade é a mais ilimitada, a mais universal. Esta contradição é o próprio tecido de nossa condição. Não foi senão com toques de varinha mágica que religiões e filosofias acreditaram suspender ou conciliar a contradição. De fato, o momento da reconciliação é o momento em que o pensamento passa ao ponto morto; suprimir o ânodo ou o cátodo significa interromper a eletrólise. Mas a aceitação imbecializada ou desesperada da contradição é uma espécie pior de morte intelectual.

6. O que fazer? Como dizer? É necessário ao mesmo tempo aceitar o que se recusa e recusar o que se aceita. É preciso exigir a totalidade e negá-la.

7. Hoje, o pensamento que quer situar-se no cerne da dialética filosofia-ciência-ação-existência deve pretender-se não apenas como pensamento planetário, mas como pensamento antropo-micro-macroscópico. Três universos de pensamento estão atualmente à deriva uns dos outros: o universo da ciência macroscópica, em que nosso espaço e nosso tempo de dissolvem nos horizontes galácticos; o universo da ciência microscópica, em que a matéria se dissolve em antagonismos energéticos antes de deixar reaparecer novos micro-universos; o universo do pensamento antropológico, em que dissolvemos desesperadamente tudo o que nos ensina a microscopia e a macroscopia, em que fingimos ignorar os dois infinitos que nos assaltam. Loucura ignorar dois destes três universos. A tarefa primeira de todo pensamento que aspira à totalidade não é buscar a unidade nesta contradição de três faces? Não é buscar esta contradição de três faces na aparente unidade antropológica? É neste sentido que deveríamos partir em busca de novas verdades. Poderemos, saberemos alcançá-las? De qualquer forma, é neste sentido somente que poderemos superar, com perseverança, as ondas da magia que incessantemente renascem. E é neste sentido que reconheceço e aceito a mensagem filosófica e antifilosófica, cientificista e anticientificista, existencial e anti-existencial, pragmática e antipragmática de Karl Marx".

8. Também eu, Morin, meu amigo, também eu.

Osvaldo Luiz Ribeiro

(Edgar MORIN, "O além-filosófico de Marx", em: Edgar MORIN, Em Busca dos Fundamentos Perdidos - textos sobre o marxismo. 2 ed. Porto Alegre: Sulinas, 2004, p. 55-60).

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