quarta-feira, 3 de setembro de 2008

(2008/6) O todo, as partes e a exegese


1. Se tomo um texto da Bíblia Hebraica - e, de resto, qualquer texto antigo - como "objetivação de consciência". Se tomo esse texto como "estratégia de intervenção social" - fala teleologicamente situada. Se assumo que não se trata de "literatura". Então devo proceder à sua leitura por meio do ferramental histórico-crítico, sob orientação dos pressupostos teórico-metodológicos da abordagem histórico-social e fenomenológico-religiosa.

2. Pois bem - o que tenho, agora, diante de mim? Se o texto passa a ser tratado, fenomenologicamente, como objetivação de consciência, o que ele se tornou? Dizendo-o de modo simples - o texto recuperou sua situação original. Mais do que uma intenção original, ele recuperou sua situação de origem. A sua situação de origem é muito mais importante, heuristicamente, do que sua intenção, porque esta é função daquela. É porque está nessa situação que essa é a sua intenção. "Longe de ser apenas um auxiliar útil à compreensão das mensagens, o contexto é o próprio alvo dos atos de comunicação" (Pierre LÉVY, As Tecnologias da Inteligência - o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: 34, 1993, p. 21).

3. O objeto que tenho na mão transforma-se. De repente, de uma página de celulose e tinta, deparo-me com um objeto híbrido - constituído tanto de seres físicos - papel e tinta -, como de seres de espírito - símbolos, história, fatos - e de organização - sintaxe, conflitos. O texto em si, apresenta-se-me como um quebra-cabeça. O todo do texto carrega a objetivação da consciência, que, por sua vez, espraia-se, como gosma, por todas as palavras. O todo, não o posso capturar, como numa experiência estética, mas capturar/recuperar/reconstruir analiticamente/sinteticamente - indiciariamente.

4. Tenho de juntar palavra a palavra e, juntando-as, juntá-las às outras, e, assim, ir construindo uma rede sintático-semântica. O todo que vou gerando, lentamente, vai corrigindo o sentido das partes, enquanto o sentido das partes vai-me proporcionando a construção do todo. O processo não tem "começo" - entro, ao mesmo tempo, em partes provisórias e num todo provisório.

5. E tudo isso precisa, agora, e desde o início, ser relacionado com a consciência que se objetiva aí - a intenção que anima o jogo sintático e a dança das palavras. Intenções definem sentidos. A intenção, contudo, não está no papel, mas na estrutura argumentativa, na retórica, nos objetivos que o texto guarda por expectativa. Na consciência do autor, ser de espírito - no texto, ser de organização!

6. Mas, ainda ai, faltam elementos, os quais não estão nem na consciência do autor, nem no papel, mas em torno do autor, de seu corpo, no mundo em que ele vive. Sua intenção, que tenho que recuperar por meio da organização das partes com o todo e do todo com as partes, dirige-se a um momento preciso, a pessoas precisas, dentro de uma tradição e cultura peculiares. Se não os recupero, não tenho nada - só fantasmas polissêmicos, em outras pragmáticas,´legítimas, mas não aqui.

7. Assim, a exegese histórico-social, de caráter fenomenológico, trabalha, ao mesmo tempo, com três elementos, nenhum deles dispensável - o texto, a consciência objetivada nele e a situação em que, teleologicamente, ela/ele se inserira. A consciência subjetiva objetivada nele dirige-se àquela situação, e sua chave hermenêutica é - apenas - essa situação. Esta, anafórica em relação ao texto, precisa ser recuperada desde o texto, para, como lamparina bruxulenante, iluminar a consciência ressuscitada. O texto é o topos onde o exegeta se situa para reconstruir ambas, e - finalmente - interpretá-lo à luz desse critério.

8. Não há pretensão de inerrância no processo, logo, no resultado. Nem tampouco desprezo quanto à sua necessidade e possibilidade teórico-metodológicas. Há limites - o exegeta jamais terá certeza de ter reconstruído rigorosamente o triângulo relacional histórico-fenomenológico consciência/situação/texto. Poderá, eventualmente, ser informado de que cometeu um erro. Nesse caso, terá avançado, porque saber que errou é uma situação melhor do que não saber se acertou. Como nunca saberá se acertou - ainda que esteja disposto a dar um braço em defesa de sua hipótese de trabalho - resta-lhe caçar erros. A sina exegética - a crítica inesgotável.

9. Por que, meu Deus, só escolho fazer o que da angústia se enamora?


Osvaldo Luiz Ribeiro

Um comentário:

Elias Aguiar disse...

Há mais tranqüilidade
na profundeza de um mergulho
do que na superfície
agitada por toda sorte de forças...

:)

Abraço,
Elias Aguiar