domingo, 24 de agosto de 2008

(2008/1) Caramujo - mundo, mito e mística


(Ouvindo Rain, de Breaking Benjamin)

1. Ler O Método foi submeter-me a um ritual de iniciação ao mesmo tempo mística e racional. De magnitude semelhante, apenas o Tratado de História das Reigiões, de Mircea Eliade. Seguindo as pegadas do bruxo francês, meus pés caminharam e caminham por veredas cada vez mais críticas e fenomenológicas, racionais e complexas, ainda que, ainda assim - por isso! - sempre cada vez mais mágicas, místicas, míticas, maravilhosas. Ele mesmo o disse - "sou racional e místico". E eu, Morin, e eu!

2. A realidade profunda do Mito tomou-se, como uma entidade africana - mas me deixou acordado. Contaminou-me, como um vírus tropical - mas me deixou saudável. Incendiou-me - mas com o fogo de miríades de pirilampos e fogos-fátuos. Colocou-me na posição de estar, a um só tempo, ontem, hoje e amanhã, criança e ancião. E, dentre todos os seres do Universo, descobri-me caramujo, a cobrir de gosma a carne do mundo. Qual é a minha casa? A que carrego nas costas, mítica, mágica, mística, noológica, feérica, ou esse carbono telúrico parido no útero do meu Sol amarelo, essas plagas desérticas de sentido, polvilhadas de mistério? Nem uma nem outra - as duas.

3. Viver no mito, sem daí jamais poder sair, é um tema de uma página espetacular de Morin, dessas que entram no nosso sangue, deslocam-se para um canto de nossas mitocôndrias contra-cartesianas e passam a ser queimadas incessantemente, misturadas ao oxigênio que nos mantém vivos. "Não podemos escapar aos mitos" - é assim que ela, impudica flor, se abre, lúcida, lúbrica, lúdica. "O nosso problema consiste em reconhecer, nos mitos, a realidade deles, e não a realidade; reconhecer a verdade deles, e não reconhecer a verdade" - ou seja, a verdade está em que é por meio dos mitos (a gosma do caramujo que me descobri ser) que nos movemos sobre e sob o real, quando agarramos sua garganta, ou quando voamos para longe dele, independentemente da "verdade" com que esses mitos nos encantam - o que é "real" e "verdadeiro" é que vivemos neles e por meio deles. A vida é um MMORPG que não acaba nunca - mas que pode acabar a qualquer momento.

4. Mais adiante, Morin desfere mais uma estocada: "não devemos acreditar que nos possamos situar acima dos mitos". Sim, porque não há um modo de sair daí, um jeito de separar de nós a gosma que desprendemos - salvo a morte, e, ainda assim, a nossa, porque também a de outrem dá-se dentro deles. As "verdades" - e as há! - serão, sempre, situadas, locais, perspectivísticas (aprendi a usar esse termo com Nietzsche). A sanidade é reconhecer que não há como chegar à perspectiva de verdades absolutas e a-míticas, tanto quanto não é verdade que não há nenhuma sorte de qualquer tipo de verdade. Há verdades, mas, sempre, "situadas", "históricas", alguma coisa entre observadas e construídas, ao alcance de nossas mãos, sempre eroticamente enoveladas por nossa gosma hermenêutica.

5. Para mim, um teólogo de formação, um doutor em sua profissão, é curioso que quanto mais fundo tenha eu cavado, tanto mais diáfano e transparente tenha se tornado o antigo objeto de minha disciplina. O que me faz concordar, em todos os sentidos, com as palavras com que Morin encerra aquela página (uma dia ela foi de celulose, hoje, de hemoglobina):

6. "Uma (...) conseqüência decorre disso, para mim. A de acabar com o antigo ateísmo... Estou e continuo sem Deus, mas sei que não existe um ponto de vista depurado de todo mito ou crença, do qual se possa considerar com desprezo o mito e a crença. O ateu deve descobrir sua crença - principalmente sua crença na razão -, seu fundamento irracionalizável, e relacionar-se com ela. Assim, nós, neo-ateus, podemos pedir aos crentes que se tornem neocrentes, isto é, que estabeleçam uma nova relação com seus(s) Deus(ses)".

7. Não posso me chamar um neo-ateu, já que nunca fui ateu, e penso seriamente ter-me tornado absolutamente imprestável para qualquer tipo de ateísmo - nem esse novo neo-ateísmo. Não saberia imaginar viver sem a consideração mística e mítica do Inefável, ainda que me controle bravamente para não trazer à tona a loucura desse pathos. Lido com ele dentro de mim, em meu mito diário, e, espero que isso seja compreensível a outros tanto quanto a mim, nos momentos de dor - que a vida é cruel como o louva-a-deus a devorar, viva, a sua presa - enquanto louva o Criador.

8. Por outro lado, não poderia, Morin, igualmente, aceitar ser chamado de neocrente. Não é - mais - "crença" que tenho. Tenho cá, na mão, no olho, no rim, no coração, vai, no cérebro, um pote de mitos, e os deuses estão entre eles. Deuses na ante-sala, e, devo confessar, lá no fundo, solitário como eu, Deus. Mas isso é mito para mim. Não defenderia isso. Não ensinaria isso. Apenas deixaria ser-me flagrado brincando com isso - e vivendo assim, porque isso sou eu.

9. Nesse caso, amigo alquímico, aceite que eu adapte sua fórmula/proposta a meu jeito. Não é - mais - crença que carego, nem descrença. É uma presença mítica, mística, mágica, como todos os elfos e sílfides, trasgos e quimeras da noite do mundo. Não recusaria tratar tal idéia - tal mito - no campo dos amigos imaginários. Tão somente não gostaria que ele fosse embora, mas que ficasse aí, olhando-me a correr em campos de trigo de Van Gogh e nos mundos de Dali.

10. Basta-me isso. Mas não menos do que isso.


Osvaldo Luiz Ribeiro

(As citações foram extraídas de: Edgar MORIN, Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 273)

Nenhum comentário: