quinta-feira, 28 de agosto de 2008

(2008/5) Do sagrado - um olhar sobre Croatto


1. "Todo fenômeno religioso é uma hierofania" (José Severino CROATTO, As Linguagens da Experiência Religiosa - uma introdução à Fenomenonologia da Religião. São Paulo: Pauinas, 2001, p. 71). Essa declaração de Croatto consta do primeiro dos seis tópicos com que resume as seções de um a três de seu capítulo "As Experiências Religiosas - Descrições e Implicações" (p. 41-72). Seu contexto comunicacional (pragmático), portanto, é a Fenomenologia da Religião (FR) como disciplina das Ciências Humanas, cujo objeto de investigação é constituído pelo fenêmeno religioso,~não reduzido teórico-metodológico a seus constituintes psico-antropo-sociológicos, mas observado a partir de "si mesmo".

2. Sendo assim, penso que há um problema com a afirmação de Croatto. Há um erro de referência, eu diria, grave. O mesmo que Tillich comete em sua famosa fórmula "Deus é símbolo para Deus". Em ambas as afirmações (Croatto e Tillich), o sujeito que funda o objeto sob estudo está escondido. Escondido o sujeito, é como se houvesse - de fato e assentadamente - Deus, fora dele, e hierofania, independentemente dele. Ora, quanto a Deus, não se sabe, nem se pode saber, se existe fora da fé do sujeito crente - nem que não existe, dada a fé do sujeito ateu. Nem uma fé nem outra podem asseverar - logo, tornar "dado científico", a sua "crença" - a existência ou a não existência de Deus. Do mesmo modo, a FR não conhece nenhuma hierofania, sequer pode afirmar que um, dois, dez, todos os fenômenos religiosos o sejam. Quem o diz - e por isso a FR estuda isso que o sujeito "crente" afirma ter sido uma hierofania.

3. Croatto, contudo, transformou, com seu modo de dizer a coisa, a hierofania em "coisa" dada. Ora, ora, ora - a FR pode estudar fenêmonos religiosos, mas, não, hierofanias. Ela pode estudar os documentos gerados pela interpretação das pessoas e, desde aí, reconstruir o que seriam, estruturalmente, tais hierofanias - com postulados teórico-metodológicos (como o de Mircea Eliade: "o 'sagrado' é um elemento da estrutura da consciência" (Origens). Mas não me parece adequado que a FR possa afirmar que cada fenômeno religioso seja uma hierofania. Ela poderia dizer que, nos termos em que assim o experimenta o sujeito crente particicipante, cada fenômeno religioso desdobra-se a partir de experiências do sagrado.

4. Mas, ainda assim, conquanto, quer-me parecer, mais teórico-metodologicamente adequada, a formulação deve ser aperfeiçoada. Porque a FR não é ingênua, nem recolhe, inadvertidamente, os testemunhos/documentos humanos. A FR sabe que os mitos, ritos e doutrinas - logo, as narrativas - constituem interpretações humanas, projetadas a partir e sobre a experiência do sagrado. Logo, de imediato, surge o problema da distinção entre experiências do sagrado que, eu diria, de primeiro nível, e experiências do sagrado, então, de segundo nível.

5. Experiências do sagrado (fenômenos da extrutura da consciência, nos termos de Eliade) de primeiro nível são experiência do sagrado que acontecem como inaugurais, fundantes, para as quais o "hierofante" (de primeiro nível) não tem discurso, conceito, explicação. Tudo, aí, terá de ser inventado, imaginado, narrado, do zero. Quer dizer, nos termos tanto de Eliade, quanto de Croatto, desde as características culturais/pessoais do sujeito hierofante, até as caracteríticas do objeto profano através do qual (gatilho) a experiência do sagrado consubstanciou-se. Diria que, hoje, no planeta, inexistem experiências desse tipo. Há culturas não "civilizadas" - mas não culturas não-religiosas. As experiências do sagrado "nuas", imagináveis apenas na condição de fenômeno necessário da história humana, essas, acabaram.

6. Experiências do sagrado de segundo nível são aquelas que se desdobram dentro de narrativas já em processo de consolidação ou totalmente consolidadas - são litúrgicas. Nessa cultura, o sagrado (elemento da estrutura da consciência) já foi "coisificado" (energizado, animado, personificado), já recebeu nome, identidade, função, forma, modalidade. O "novo", aí, torna-se heresia. A domesticação das "hierofanias" fundantes como que oblitera a diversidade das modalidades do sagrado, ele se petrifica, deifica. Por mais "forte" e "poderoso" com que se apresente o seu aspecto, trata-se, aí, de uma domesticação tribal.

7. Do ponto de vista da Sociologia da Religião, não faz diferença (trata-se do mesmo "fato social", igualmente eficiente). Do ponto de vista da Psicologia da Religião, não faz diferença (trata-se do mesmo fenômeno da psiquê). Do ponto de vista da Antropologia da Religião, não faz diferença (trata-se, em ambos casos, de cultura). Do ponto de vista da Fenomenologia da Religião, sim, faz - e muita - diferença. Experiências do sagrado podem emergir em contextos litúrgicos, mas são de caráter diferente daquelas de caráter fundante - pré-litúrgicos. As liturgias são encontros marcados - lugar, dia e hora - com o "divino", hipostasiado e domesticado (Feuerbach); hierofanias fundantes são irrupções inusitadas, fenômenos de consciência sem absolutamente qualquer conteúdo - que implicarão em construções de conteúdo (Eliade). Poderão desdobrar-se em liturgias - nesse caso, passarão, todas, pelas fases de mito, rito e doutrina (Feuerbach). Mas, eventualmente, alternativamente, em arte - e mesmo, em política (cf. a liturgia, o mito, o rito e as doutrinas dos hinos nacionais das repúblicas modernas - "Pátria amada, idolatrada, salve, salve").

8. Não chegaria a dizer que é inquestionável que Croatto cede à tentação "teológica" de legitimar "Deus" e a "religião" por meio da Fenomenologia da Religião. Mas Frank Usarski, crítico feroz do uso teológico da FR, encontraria nessa síntese de Croatto uma "prova" do que ele considera o epitáfio da Fenomenologia da Religião de "tipo" clássico - fraude da espiritualidade protestante.

Osvaldo Luiz Ribeiro

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